Depois de perceber a grande quantidade de discursos de ódio na internet, principalmente nas redes sociais, decidi parar um tempo para me dedicar a estudar as relações virtuais que estabelecemos em rede, e confesso que, se estava preocupado, ao ler o último livro que me dispus a estudar, No Enxame: Perspectivas do Digital, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, saio mais aturdido do que nunca. Pois, se Byung-Chul Han estiver correto, como acredito que esteja, as redes sociais estão nos levando a um destino dramático, trágico e doentio: à formação de uma sociedade bestializadamente odienta.
Segundo Chul Han, as redes sociais apresentam hoje um ambiente psíquico-patológico sem precedentes na história da humanidade, levando muitos a uma relação doentia, não só com as redes sociais em si, mas consigo mesmos, com suas autoimagens. Mas, nesse texto quero focar em como Han identifica o surgimento das ondas de ódio a partir desse sintoma patológico.
A primeira constatação que faz é que, as redes sociais, diferentemente do que propunha anteriormente, propiciaram o surgimento de um ambiente avesso ao diálogo. “Conectados” na rede, cada usuário se enxerga como “fonte de verdade”, consumidor e produtor da própria informação “verídica” que interpreta, criando um mundo de verdades seu, alienado do mundo dos fatos e fundado na crença de que sua visão de determinado acontecimento da vida é a única correta. Assim, o usuário não entra mais nas redes sociais para socializar [pois, socializar é ler e ser lido, ouvir e ser ouvido], mas para despejar suas “verdades”, que, na maioria das vezes, além de inverdades, são empacotadas em demonstrações de ódio cada vez mais radicais. O “homo digitalis” é um indivíduo raivoso que, adoentado psiquicamente pelas redes, despeja seus ódios em um dia e palavras de salvação em outro, numa exposição total de sua paranoia real no ambiente virtual.
Quando cada um se acha detentor da única verdade, é prova de que vivemos em uma sociedade narcísica e autocentrada, onde ninguém se vê nem se ouve. O ler isso lembrei do romancista lusitano José Saramago, que alegorizou isso muito bem em sua obra Ensaio sobre a Cegueira [vale a pena assistir o filme de mesmo nome baseado na obra de Saramago]. Não há sociabilidade nessa “sociedade” virtual, pois ninguém quer ver, ler e ouvir o outro na rede, quer apenas ser visto, lido e ouvido, ou, no mais das vezes, ver, ler e ouvir sua própria crença nas postagens alheias de gente que “segue”. Quando o usuário diz que vê, lê e ouve, trata-se sempre de um fingimento. Assim, são nada mais que bolhas fechadas em torno das mesmas ideias sufocantes de sempre. Nelas, nada de novo há porque não há espaço para reflexão verdadeira.
As redes sociais são ambientes patologicamente narcísicos. Nelas o usuário não quer dar lugar à fala do outro e sua opinião por medo de se ver convencido [para ele, ser convencido é demonstrar fraqueza], quer travar monólogos intermináveis consigo mesmo. A fala/opinião do outro é vista como inverdade, e, assim, passível de ser combatida por todos os meios, inclusive o violento. O tipo de violência praticado nas redes é o digital. A palavra é “o ovo de áspide” que faz eclodir a mais brutal das violências a partir de consciências adoecidas, seja pela rede, seja por uma vida medíocre que sente a necessidade de que suas opiniões sejam “visibilizadas” a todo custo, como se delas dependesse a melhoria de toda humanidade. Sim, as redes sociais dão surgimento a outro tipo de doença psíquica: a megalomania. E neste caso, não há público mais afetado por essa doença mental paranoica do que os ideólogos e os religiosos. Aqui todo tipo de teoria da conspiração infesta mentalidades doentias.
O ódio nas redes sociais não é a doença, é o sintoma da doença psíquica. Para ela existir, entretanto, há de haver “o inimigo da vez”, que, geralmente, é uma pessoa ou uma minoria que se pretende erradicar por meio do ódio. É interessante o modo como Chul Han afirma que nem mesmo as religiões tradicionais foram respeitadas, tendo sido usadas e abusadas por partidos políticos da extrema-direira em muitos países, fazendo amplificar até mesmo discursos neonazistas e totalitaristas, sempre sob o lema nazifacista: “Deus, pátria, família”.
O ódio se agrava e se espalha, como uma infecção generalizada, quando os usuários se “conectam” com outros usuários que pensam como ele. Daí, todo conteúdo beligerante e alucinógeno pode surgir, desde acordos para linchar publicamente políticos à atacar minorias.
Han afirma que nesse ambiente os nervos dos usuários são estimulados a irem à flor da pele, e mergulhar nessas águas é um caminho sem volta. É que, quem acessa as redes sociais, vai, conscientemente, em busca desse ambiente onde os ódios são “permitidos”, pois tais ambientes funcionam como espaços para “descarga de afetos”. Desse modo, as redes sociais são “mídias de afetos”. Quem se conecta começa, conscientemente, sempre em busca de visibilidade – mesmo que seja pelo “curtir” postagens alheias, pois “curtir” também é uma manifestação de opinião, de apreço, de aprovação pelo que foi postado. Mas também começa, conscientemente, em busca de um lugar para descarregar/despejar seus afetos, principalmente seus ódios mais viscerais.
O usuário acredita poder fazer isso e sair ileso, contudo, atuar por meio de um “perfil” não o deixa ileso, algo em sua consciência e modo de ser está sendo silenciosamente modelado pelo ódio que despeja: ele acaba normatizando o ódio, a ofensa, o ataque àquela pessoa, àquele desafeto, àquele político, àquele esportista, sem perceber que ele mesmo revela em suas postagens a mais truculenta bestialidade monstruosa de seu caráter: ser o mais novo “cidadão odiento das redes sociais”. Pois, segundo Han, fazer parte das redes sociais é se permitir ser um espetáculo sempre patético de si mesmo à vista de todos, quando o ódio ou a desinformação é o sentido de vida do usuário. O ódio cega esse tipo de usuário a defender não a verdade, mas sua ideia de verdade, ainda que a verdade de fato esteja bem diante de seu nariz.
Para ele o mais importante não é defender a verdade dos fatos, mas a sua própria verdade, ainda que ela seja absurdamente contra a realidade.
Um filme que retrata bem o que Byung-Chul Han descreve é o polonês Rede do Ódio, lançado pela Netflix em 2020. Nele o jovem estudante de direito Tomasz Giemza, após ser expulso por plágio por uma importante universidade polonesa, decide trabalhar para uma empresa de publicidade e oferece seus serviços de hater. É possível perceber como o doce “Tomeke” – apelido que lhe dão – vai, no decorrer do filme, à medida que se deixa levar pelas postagens de ódio, se transformando em outra pessoa. Sua feição muda, seus sentimentos são alterados, ele revela toda sua monstruosidade, crendo que seu “trabalho” não está afetando em nada sua vida, quando o transformou em um inescrupuloso.
O perigo das redes, é que elas estão nos transformando em algo que no fundo não queremos ser, mas estamos nos tornado como indivíduos: gente movida pelo ódio.
Dalmo Santiago Jr. é Teólogo, Filósofo, Bacharel em Direito, Poeta e Cronista.
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