Na introdução do livro A Dádiva do Amor, com textos de Martin Luther King Jr, o Dr. Raphael Gamaliel Warnock, pastor da Igreja Batista Ebenezer, escreveu:
“Ninguém na história americana abordou de modo mais eloquente ou promoveu de maneira mais afetiva os ideais de liberdade, justiça e igualdade que o reverendo dr. Martin Luther King Jr. Com sua voz, ele desacreditou a doutrina falaciosa da supremacia branca e, com seu ativismo, mudou os Estados Unidos, libertando filhos e filhas de “ex-escravizados” e de “ex-escravagistas” e apresentando-os à possibilidade do que chamou de “comunidade amada. O Dr. King legou a todos nós uma dádiva de amor.[1]
O moralismo ocupa hoje na espiritualidade cristã o lugar que em Jesus e na igreja apostólica a justiça social ocupava: o centro. É com estas palavras que começo este texto acerca de um dos teólogos que me influenciaram a ver no evangelho de Jesus não o fundamento legitimador de meus preconceitos e concepções formadas prenhes de moralismo barato, mas como o alvorecer de um novo mundo que começou com o irromper do Reino de Deus.
No último dia 17 de janeiro, nos Estados Unidos se celebrou o dia de Martin Luther King Jr. Infelizmente, a maioria dos evangélicos no Brasil desconhece este nome, muito em razão da falta de interesse dos evangélicos de tentarem compreender sua própria história. Por outro lado, há também aqueles autores mais fundamentalistas que tentam apagar da memória da igreja o importante papel exercido pelo pastor Martin Luther King Jr, como que formigas tentando derrubar um gigante na fé. A boba tentativa crítica que fazem trata de algumas falhas que King apresentou em sua carreira. Mas, o moralismo disfarçado de santidade da piedade fundamentalista se esquece que foram homens falhos como Abraão, Moisés, Sansão, Davi, Elias, dentre outros, que Deus usou para operar seus mais portentosos atos na história da humanidade. Além disso, incomoda ao fundamentalismo o modo como o dr. King resgata o tema da justiça social no evangelho do Reino de Deus, conclamando a igreja evangélica a saltar da metafísica para a física onde os sofrimentos humanos gritam por socorro.
Há também por parte de certo fundamentalismo a intenção de apagar da memória cristã seus heróis pretos. Por isso, creio ser importante fazer menção ao pastor Martin Luther King Jr, pois creio firmemente que, como profeta da contemporaneidade, ele mais do que ninguém soube recentralizar a justiça social no coração do Reino de Deus, golpeando todo moralismo que preservava um status quo de sofrimento e morte.
Pastor, afro-americano, Batista, progressista, ganhador do Nobel da Paz e um exímio orador, o pastor Martin Luther King Jr foi, e nisso concorda a maioria dos eruditos cristãos, a figura evangélica mais relevante e proeminente do século XX.
Martin Luther King Jr foi um pastor engajado, corajoso e cheio de fé, levando em consideração o contexto da natureza racista de muitas igrejas evangélicas fundamentalistas como as presbiterianas, metodistas e batistas do sul dos Estados Unidos, que lutavam não só para impedir que irmãos negros participassem de seus cultos, como também que participassem igualmente do direito ao voto, emprego e liberdade, seja em seus distritos seja na nação como um todo, afirma Bobbi Bruce.
Não foi fácil para Martin Luther King Jr ser o pastor que foi e pregar o evangelho que pregou: o evangelho de Jesus, mas destemidamente cumpriu sua missão.
Outra coisa a se dizer é que não pode estas igrejas quererem esconder dos crentes brasileiros cenas grotescas como as dos quase 2.000 “klanmans” lotando as igrejas evangélicas presbiterianas, metodistas e batistas sulistas nos Estados Unidos supremacistas nos Estados Unidos, devendo este fato servir para nós como autocrítica para igrejas que se autoidentificam como “reformadas” e buscam sempre quando podem marginalizar a luta pelas questões sociais como algo dispensável, rememorando em algumas de suas atitudes um histórico racista e intolerante que deve ser rechaçado por todo seguidor do Jesus dos Evangelhos.
A ala de pastores e evangélicos mais conservadora dessas igrejas reagiu radicalmente contra o engajamento do pastor Luther King junto aos pretos. Para estes pastores e evangélicos já era um absurdo preto estar livre, imagine sentado no mesmo banco que piedosos homens e mulheres brancos nos cultos dominicais. Assim, para deslegitimar a voz do pastor Martin Luther King Jr entre as demais igrejas do país, pastores presbiterianos e batistas chamavam-no de comunista e até mesmo de herege, coisa que caiu bem aos ouvidos evangélicos mais reacionários, que não deixaram de, onde quer que Martin Luther King Jr fosse pregar, palestrar ou realizar um pronunciamento, preparar ataques violentos em hordas, seja com porretes, bombas e armas de fogo, para, se não conseguissem impedi-lo de falar, o matassem. De fato, o pastor King foi um dos profetas perseguidos por uma igreja intolerante norte-americana.
Mas, a intolerância religiosa dos evangélicos conservadores do sul dos Estados Unidos não venceu o poder do evangelho do Reino de Deus que estava em cada palavra e ação de Luther King Jr. Em Selma, no Alabama, ele atravessou a famosa ponte Edmund Pettus com uma multidão de irmãos e irmãs que, caminhando com os braços dados uns com os outros, formavam uma corrente divina onde apelavam para o amor e a graça de Jesus – amor e graça palavras que sempre carregam um teor subversivo para as almas mais fundamentalistas. Juntos, acordaram à luz da Palavra, que a política de segregação racial e de intolerância religiosa dos fundamentalistas presbiterianos e batistas era diabólica por ser excludente e não fazer parte da agenda do evangelho de Jesus, e sim de uma igreja racista e maculada pela política do ódio.
A marcha que começaria em Selma, finalizando em Montgomery, ganhou força na voz de muitos outros cristãos e igrejas, principalmente Batistas, que foram convencidos de que, de fato, a igreja evangélica errava não tomando a dor dos irmãos e irmãs pretos. Mesmo sendo acusados de comunistas e hereges, uniram forças com Martin Luther King Jr. E foi em Whashington D.C, no dia 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, que ele pregou o mais poderoso, impactante e transformador sermão de sua vida, que levou os sistemas segregacionistas a desabarem um após o outro em todo o mundo ocidental – também no Brasil. Seu sermão foi intitulado: “I Have a Dream” (Eu tenho um Sonho).
O pastor Martin Luther King Jr conseguiu algo além do que imaginou. Seu coração estava nos Estados Unidos, mas o Senhor fez suas palavras ecoarem pelo mundo inteiro, porque as suas palavras eram a Palavra de Deus em sua boca profeticamente necessária naquele tempo.
Por ter conseguido vencer todo um governo e evangelicalismo perverso, racista e preconceituoso, sem uso de armas, com o fez o não tão pacifista Malcolm X, – pois, como dizia este pastor, um bom cristão já tem como arma poderosa o nome do Senhor sobre sua vida, não precisando apelar para violência alguma – em 14 de outubro de 1964 ganhou o Nobel da Paz.
O pastor Martin Luther King Jr ensina lições preciosas para os cristãos hoje. É preciso que nos conscientizemos, por exemplo, de que a igreja nem sempre esteve e está do lado certo da história. Assim como evangélicos fundamentalistas apoiaram o retorno da escravidão de negros lutando na Guerra de Secessão (1861-1865) contra a liberdade dos pretos, também foi um evangelicalismo fundamentalista que apoiou o nazismo na Alemanha contra os judeus – tendo perseguido o pastor Dietrich Bonhoeffer – na África do Sul, defendendo o Apartheid (o espúrio e desumano governo de segregação racial do país.
Martin Luther King Jr deixa o exemplo de um evangelicalismo que se move pelo amor e pela compaixão. Que não acende fogueiras contra vozes discordantes, por entender que nosso reino não é deste mundo, e que nossa missão é trazer gente para Jesus, não acossá-las para distante Dele.
Também nos ensina que a verdadeira igreja de Jesus transforma a sociedade pelas vias de uma espiritualidade que leva a sério a justiça social – um apelo divino desde o profetismo – e não pelas vias do moralismo.
É possível sermos uma igreja relevante, se, e somente se, voltarmos ao evangelho. Mas, voltar ao evangelho não é brincar de teologia, mas encarnar Jesus em nossas ações concretas. Significa ser Jesus, mas que qualquer pessoa, apóstolo ou profeta, na vida de gente que anseia ver Jesus em nós.
Dalmo Santiago Jr. é Teólogo, Filósofo, Bacharel em Direito, Poeta e Cronista.
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BORGES, Pedro. Igrejas negras nos EUA: resistência ao racismo e alvo do supremacismo (almapreta.com). Acessado em 19 jan. 2023.
CARSON, Clayborne. A Autobiografia de Martin Luther King. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro.
GOMES, Laurentino. Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Volume I. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
KING, Martin Luther. A Dádiva do Amor. Tradução de Claudio Carina. São Paulo: Planeta, 2021. 8.
PEREIRA, Helder Nozima. Anos 1960: a década que não terminou – Dois Dedos de Teologia.
Souza, Silas Luiz. Protestantismo e Ditadura: Os presbiterianos e o governo militar no Brasil (1964-1985). São Paulo: Fonte Editorial, 2014.
[1] KING, Martin Luther. A Dádiva do Amor. Tradução de Claudio Carina. São Paulo: Planeta, 2021. P. 8.
BRUCE, Bobbi. Quando a Ku Klux Klan vagou por Downey. <https://www.thedowneypatriot.com/articles/when-the-ku-klux-klan-roamed-downey?format=amp>. Acessado em 12 de set. de 2022.