Deixei de ler livros de autoestima e de autorrealização há muito tempo. Tenho um monte deles em minha biblioteca. Nenhum comprado por mim. Todos presenteados. Não os joguei fora por serem presentes. Presente a gente não joga fora. Presente é a concretização do afeto do outro na forma de um objeto. A gente deve respeitar isso. É preciso dar valor ao devido carinho de quem nos presenteou. Guardo-os, portanto, com respeito e carinho a quem os me deu. Mas, lê-los? Não mais.
Embora os tenha lido há algum tempo, não os revisito mais. Explico porquê. É que esses livros de autoestima e autoajuda são todos descartáveis. Quinquilharias. Pintam um mundo que não existe. São como os brinquedos mais bobos que tivemos quando crianças. Eles não representam a vida como ela é. Vendem uma existência controlável e administrável ao alcance das mãos que não existe. Senão na cabeça dos (as) ingênuos (as).
Confesso que não sei a razão das pessoas terem me dado esses livros. Talvez, achando ter encontrado “o livro” que as ajudou em algum momento de suas vidas a resolverem alguns de seus problemas, resolveram partilhar comigo o tal “antídoto para todos os males”, que todo livro de autoajuda e autoestima pretende ser. “Um remédio para todos os males”, “Um livro transformador”, “Uma obra para impulsionar sua vida para melhor!”… Estas são coisas que lemos nas orelhas dos livros de autoajuda e autoestima. E me fazem lembrar os vendedores de folhas milagreiras na feira de São Joaquim em Salvador, na Bahia.
Os vendedores gritam de suas quitandas cheias de folhagens perfumadas de tudo o que é planta: “Problema de artrite, tendinite, dor de dente, insônia, frieira, barriga-d’água, cefaleia, indigestão, gastrite, vida amorosa arruinada, “carrêgo”, para tudo essa folha aqui dá jeito!”. Frenéticos, balançam nas mãos as folhas que teriam todos esses poderes “medicinais”. Estão lá há décadas vendendo essas folhas. Se estão lá, é por haver mercado consumidor farto na área da “busca por soluções fáceis e imediatas”. O vendedor de folhas milagreiras e o (a) autor (a) de livros de autoajuda e autoestima compartilham da mesma ideia: “Todos os seus problemas podem ser resolvidos se você quiser!”. Desculpem-me, mas nunca vi algo tão patético e adoecedor de espíritos.
Descri disso tudo. Descri que existem curas para todos os males da vida. Para todas as frustrações e crises da existência humana. Para os sofrimentos mais infelizes. Para a infelicidade permanente do existir. Cheguei a essa descrença por um repertório bíblico. Os livros de Jó e de Eclesiastes me ensinaram, desde a mais tenra idade, a enxergar o mundo como lugar inóspito, onde experiências de alegria e felicidades são raras, devendo ser fruídas intensamente no instante que aparecem, pois são efêmeras.
Ora, se me acho infeliz por pensar assim? Bem, eu lhe perguntaria: “Você algum dia se esbarrou nas ruas da vida com alguém plenamente feliz? Plenamente otimista?”. Se me disser que sim, então direi que esta pessoa ou pessoas não são felizes, são fingidores de felicidades. Por que, nesse sentido, diz acertadamente o filósofo Filipe Pondé, “o otimismo seria simplesmente um estado de espírito em que você ri muito porque você é ignorante. Porque você não sabe o que está à sua volta”.1
Creia-me. Almas felizes não habitam esse mundo. Nem o mais radiante dos gurus, nem o mais perspicaz autor (a) de livros de autoajuda ou autoestima, nem os mais entusiasmados dos sacerdotes, nem o mais competente coach! Todos guardam na intimidade de seus corações sofrimentos dilacerantes que só eles sabem quanto pesam. É que o fato de sermos inconclusivos, absolutamente abertos, inquietos, sempre insatisfeitos, nos impede de alcançar essa “felicidade-enquanto-estado-de-espírito”, enquanto conclusão, fechamento absoluto de ciclos. Tudo isso, coisas que só existem no papel, inexistindo na vida de carne e osso onde nossos sentimentos e sofrimentos nos golpeiam forte. A vida real é felicidade-enquanto-processo. De breves momentos que precisam ser reconhecidos com sabedoria, vividos com intensidade e não banalizados na busca desenfreada por futilidades.
Ah! Os livros de autoajuda e de autoestima que ganhei! Sabe o que penso? “Ora, se me presentearam, é pelo menos por duas razões: ou sou um homem explicitamente muito ranzinza e infeliz para essas pessoas, ou querem compartilhar comigo uma ferramenta que foi boa para elas, na esperança de que seja boa para mim”.
Todo livro de autoestima e de autoajuda parte dos seguintes pressupostos: (1) “Você é uma pessoa boa que só precisa de autoestima elevada para ser feliz” e (2) “Você tem o controle da vida em suas mãos. Todos os seus problemas podem ser resolvidos se você quiser”. Jamais li ou ouvi coisa tão infantilizadora como essa! Assim, o mesmo mercado que promete “felicidades fáceis” na crença em uma existência completamente administrável e controlável, que não existe, abre novos outros vazios a cada frustração “superada aqui”, revivida logo ali.
Perdoem-me os que ainda creem nessa bobagem toda, mas não há nada mais em descompasso com a verdade que vivemos todos os dias. Esse mercado da autoajuda e da autoestima pode fazer bem ao nosso ego. Mas, é aquele “bem” volátil. Rapidamente temporário. Encanta mais do que conscientiza. Eleva-nos a um mundo idílico onde tudo está ao alcance de uma firme decisão. De uma dieta. De um esforço. De uma mudança de rotina. De uma nova postura. A partir daí, vendem-nos um mundo de garantias que não garantem absolutamente nada!
Queres ser feliz? Então está na hora de abandonar esses brinquedos de crianças mimadas, que só produzem adultos infantis birrentos quando os sofrimentos reais aparecem e bagunçam o “parquinho” idílico das felicidades fáceis deles. Esta crença patética e pueril. Sim, essas narrativas para crianças dormirem. Esses contos de fadas da autoestima e da autoajuda que só nos fazem dormir quando deveríamos estar bem despertos!
A primeira coisa que é preciso ter em mente é a clara noção de que não, você não é bom (boa) como pensa e nem sempre precisa de autoestima para ser feliz. Certa vez minha esposa, que é pastora, disse o seguinte em uma de suas pregações: “Quando você achar que é bom o suficiente sempre lembre que há um asiático de 13 anos em algum lugar do mundo que supera você”. Saber disso, que você não é bom o suficiente, te ajuda a não querer se comparar com os outros. A compreender que cada um de nós deve buscar ser a melhor versão de si mesmo na realidade onde estamos inseridos. Isso não quer dizer se acomodar à mediocridade. Trabalhe, se esforce, faça o seu melhor para conquistar o que você deseja, mas se não conseguir, ora, não amontoe mais sofrimento que os sofrimentos que a vida traz. “Ah! Mas, por que essa pessoa tem isso e eu não consigo ter!”. O autor (a) da autoestima e da autoajuda dirá para você: “Você não tem porque não se esforçou o bastante! Mas, você pode chegar lá! Se esforce! Estude! Trabalhe!”. Eu perguntaria a esses autores (as): “Quanto vocês pagam para quem faz tudo isso que escreveram como caminhos para o sucesso e não chegam lá?”. Eu proporia o seguinte: Todo livro de autoestima e autoajuda, para desestimular mesmo a publicação deles, deveria vir com um selo de garantia inscrito assim: “Se este livro não o ajudou a chegar onde te prometeu chegar, devolva-o à loja onde o comprou, e receba seu dinheiro de volta”. Sabe porque não há esse selo? Por que o mercado de autoestima e de autoajuda faliriam. Seus autores (as) e editoras sabem que as promessas contidas em seus livros não se aplicam a todos, mas nenhum têm o cuidado de afirmar isso. Não demora muito para que pessoas que fiaram suas felicidades nessa “tecnologia da felicidade” fadada ao fracasso se veja no brejo… de suas frustrações.
O pastor norte-americano Timothy Keller faz uma provocação acerca desse afã de se querer fazer fabular um mundo bonitinho onde uma vida feliz é resultado de uma vida de autoestima. Leia comigo esse fragmento:
Até o século 20, as culturas tradicionais (assim como a maioria das culturas do mundo) sempre acreditaram que a autoestima elevada demais era a causa de todos os males da sociedade. O que provoca a maior parte dos crimes e da violência? Por que as pessoas são maltratadas? Por que são cruéis? Por que cometem os erros que cometem? A resposta tradicional diria que a culpa era do hubris: palavra de origem grega que significa soberba ou autoestima elevada demais. Tradicionalmente, era assim que se explicava o mau comportamento das pessoas. No entanto, na sociedade ocidental de hoje, desenvolvemos um consenso cultural totalmente oposto. A base da educação contemporânea, a maneira de tratarmos os encarcerados, o fundamento da maior parte da legislação moderna e o ponto de partida do aconselhamento de hoje são exatamente o oposto do consenso tradicional. A crença hoje — que lança raízes profundas em tudo o que existe — é a de que as pessoas agem mal por falta de autoestima e por terem uma valorização muito baixa de si mesmas. Por exemplo, a razão pela qual um marido espanca a mulher e algumas pessoas se tornam criminosas seria o fato de que essas pessoas têm uma valorização muito baixa de si mesmas. Antigamente, pensava-se que o motivo era a autovalorização muito elevada e o excesso de autoestima. Hoje, acredita-se que esse tipo de comportamento resulta da autoestima em doses abaixo do necessário. Há alguns anos, o New York Times publicou um artigo da psicóloga Lauren Slater chamado “The trouble with self-esteem” [O problema da autoestima]. Não era um artigo inovador nem totalmente inesperado. Lauren simplesmente relatou o que os especialistas sabiam há muito tempo. O importante, ela afirma, é que nada comprova que a autoestima negativa seja um grande problema na sociedade. Lauren cita três pesquisas recentes sobre a autoestima, e todas chegam a essa conclusão. Como ela mesma disse, “… as pessoas com autoestima elevada são mais perigosas àqueles que as rodeiam do que as pessoas com baixa autoestima, e estar incomodado consigo mesmo não é a fonte dos maiores e mais dispendiosos problemas sociais de nosso país”.2
O que a psicóloga Lauren Slater percebeu é que não necessariamente as pessoas com boa autoestima viviam vidas melhores. Uma constatação acertada. Há momentos que se sentir culpado, triste, fracassado, derrotado, não serão coisas ruins em si mesmas. Sentir estas coisas, que chamamos de “baixa autoestima”, pode ser o catalizador, o “cataputador” para uma vida mais combativa e, ao mesmo tempo, sem ser paradoxal, mais conformada até onde podemos chegar.
Ora, todos nós temos limites. Há limites superáveis, outros não. Cada um de nós teve uma educação familiar, escolar, acadêmica. Uma formação psicológica singular. Há experiências que, infelizmente, uma vez instaladas em nossa consciência, são insuperáveis. E os “doutos docentes das felicidades padronizadas”, como os (as) autores (as) dos livros de autoajuda e autoestima, deveriam ser mais honestos e empáticos em levar isso em consideração.
Seus leitores não merecem ser enganados. Já vivem vidas muito difíceis para acharem que tudo está ao alcance de uma decisão, como se inúmeros outros fatores, concernentes a determinados vetores de experiências individuais, não existissem. É isso que chamo de “Felicidades Padronizadas”. Esses livros de cunho exageradamente otimista padronizam felicidades para todos os públicos indistintamente. São perigosos adoecedores de almas. São antídotos que envenenam. Prometem felicidades arrastando para as infelicidades cotidianas.
Tenho repetido até aqui que a autoestima aumenta nossa presunção de que tudo na vida é controlável e administrável. Contudo, basta parar para viver a crueza da vida, para perceber que nela pouco da vida é controlável ou administrável. E, ainda assim, esse pouco “administrável”, não nos dá garantia alguma de que as decisões que tomamos, os hábitos que disciplinamos, os pensamentos que condicionamos, as estratégias que traçamos, darão no objetivo que projetamos.
É importante, a fim de que não nos peguemos sendo bobos, que aceitemos esta realidade: a vida é imprevisível e indomesticável. Só ingênuos ainda não aceitam ou sabem disso. Nem sempre nossas competências técnicas, intelectuais, emocionais, gerenciais ou mesmo espirituais, darão conta de conformar o mundo às nossas vontades. A regra é exatamente o oposto. Na maioria das vezes, a vida nos contrariará mais do que se conformará ao que queremos. E a felicidade está exatamente em aceitar alegremente esta verdade: a vida é imprevisibilidade nua e crua.
Aceitar que há vidas que não viverei, viagens que não farei, padrões que não alcançarei, estéticas que não terei, comportamentos que não desenvolverei, riquezas que não adquirirei, casamentos perfeitos que não viverei, em hipótese alguma significa se conformar ao pessimismo. Pelo contrário, significa ter a consciência despertada para a realidade das coisas. Independentemente do que os gurus das felicidades absolutas afirmem. Realidade esta que muitos desaprenderam de olhar, por terem os olhos e a vida naufragando nos contos de fadas da autoestima e da autoajuda.
Isso significa aprender a olhar para si mesmo e se reconhecer no encontro com a própria pessoalidade e personalidade, com a própria singularidade, com o que te faz ser diferente dos outros, com felicidades distintas dos outros, inclusive algumas vezes em oposição à felicidade padronizada como felicidade das massas, da maioria, que está sendo vendida por aí. Assim, aprendemos, semelhantemente, a lermos nossos limites, dificuldades, traumas, medos, não pelo olhar dos outros, mas pelo nosso. Para somente a partir daí dar-se à libertações desses mesmos impeditivos, ou, conformações que levam sim à felicidades, seguindo por rotas nunca padronizadas.
Há pessoas que conheço que, enquanto viverem em suas redomas de vidro, ilusoriamente protegidas na ideia de que conseguirão tudo o que quiserem pelo poder de sua autoestima, sofrerão. Lamberão as mesmas feridas de sempre. Guardarão as mesmas mágoas. Fingindo ser pessoas “zens” e do bem, continuarão a afagar infernos em sua alma pesada, rancorosa, triste, fútil e frustrada. Porque o que precisam de vez em quando é de uma baixa autoestima que as leve à humildade. Humildade que aprende que a razão que se acha suficientemente competente para dar cabo de todos os problemas da vida, é uma razão infantil que ainda está apegada a todo tipo de infantilidade boba e a brinquedos de fantasias que frustram.
Da mesma forma os que querem encontrar felicidade em livros, lives e palestras de autoajuda, caiam fora dessa! O Mercado da Autoajuda traz consigo o Mercado da Dependência. A única pessoa que é beneficiada de verdade com o mercado da Autoajuda, aqui para nós, é o comerciante que se aproveita da carência das pessoas por uma vida melhor. E os influencers, se não ganham dinheiro por visualização de vídeos, ganham por se sentirem bem consigo mesmos, ao lerem os elogios que são postados nas respostas a este tipo de conteúdo que produzem.
Saber que nem sempre a vida funciona como a gente quer, e ainda assim brindá-la, e estar ciente de que nem sempre é de afagos no ego que precisamos, mas de um bom choque de realidade e de humilhação que nos leve à humildade, esse sim parece-me ser um bom caminho para a felicidade madura, não padronizada, mas singular. É preciso que cada um encontre sua própria felicidade sem se ater às felicidades padronizadas. Bom caminho. Boa caminhada para vocês nesse objetivo.
1. cesso em: https://www.youtube.com/watch?v=vasx-HUzNso.
2. KELLER, Timothy. Ego transformado. Vida Nova. Edição do Kindle. (pp. 8-9)