No ano passado caiu uma tempestade forte em Gurupi. Raios e trovões rasgavam o céu enegrecido. Um gélido frio adentrava a casa. Lá fora no quintal parei contemplando uma flor. Flor minúscula. Inexpressiva. De uma plantinha que sequer sei o nome. De certo não se tratava de planta importante. Plantas importantes têm nomes conhecidos. Rosa, dracena, orquídea, copo de leite, etc. Esta nasceu entre as brechas de pedras lavradas do meu quintal.
Surgiu de um broto. Uma florzinha branca insultada pelos violentos ventos daquela tempestade. A tempestade se foi. Ela, permaneceu. Bela. Alvissareira. Ousada. Petulante anã. O que é a resiliência quando se faz flor, não? Mas, hoje a fui procurar no mesmo quintal. Não estava mais lá. Nem a flor, nem seu caule. Não houve tempestades por esses dias. Agosto, todo tocantinense sabe, é tempo de calor. Algo, entretanto, levou a flor e sua beleza. Não foi algo tão poderoso como o céu enfurecido em dias de raios, tempestade e trovões. Digo o que foi. A sutileza do tempo.
Estamos o tempo inteiro em busca de sentido para as nossas vidas. Alguns cravam sentido de vida no trabalho, nos filhos, num novo negócio, numa paixão, em aventurar-se em ser influencer, e por aí vai. Não demora muito para percebermos que nada no mundo é capaz de satisfazer os apetites existenciais que estão constantemente a nos impulsionar à eterna busca por sentido.
Um dos meus livros de cabeceira é Eclesiastes. Não… Você não o encontrará em alguma instante de livraria. Este é um dos livros da Bíblia. Escrito, segundo a tradição, pelo rei Salomão, todo o livro de Eclesiastes é uma reflexão sobre o sentido da vida como objeto de procura de todo ser humano.
A grande verdade de nossa natureza é esta: vivemos em busca de sentido. É deste pressuposto que o Sábio de Eclesiastes parte. Ele mesmo se descreve como alguém que, em busca de sentido, realizou todo o trabalho de uma vida. Ele escreve em Eclesiastes 2.4-11:
“Lancei-me a grandes projetos: construí casas e plantei vinhas para mim.
Fiz jardins e pomares, e neles plantei todo tipo de árvore frutífera.
Construí também reservatórios para regar os meus bosques verdejantes.
Comprei servos e servas e tive aqueles que nasceram em minha casa. Além disso tive também mais bois e ovelhas do que todos os que viveram antes de mim em Jerusalém.
Ajuntei para mim prata e ouro, tesouros de reis e de províncias. Servi-me de cantores e cantoras, e também de um harém, as delícias do homem.
Tornei-me mais famoso e poderoso do que todos os que viveram em Jerusalém antes de mim, conservando comigo a minha sabedoria.
Não me neguei nada que os meus olhos desejaram; não me recusei a dar prazer algum ao meu coração. Na verdade, eu me alegrei em todo o meu trabalho; essa foi a recompensa de todo o meu esforço.
Contudo, quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há qualquer proveito no que se faz debaixo do sol”.
É verdade que a maioria das pessoas tem exatamente esta sensação quando chega na idade avançada. Idade na qual Salomão escreve. Ele olha para sua vida, diante da morte que o espreita mais de perto, e vê que todos os seus esforços foram “inútil”, e “correr atrás do vento”. É por que a grande verdade por detrás de nossa farsa de que encontramos a tal felicidade, é que, somente depois que se vive inteiramente a vida, e se está frente a frente com a finitude, temos condições de dizer o que Rubem Alves escreveu em seu livro da velhice:
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a mais lugares aonde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos imaginários.1
Conclusão que também na velhice o poeta Mário Quintana chega ao escrever:
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.2
É que na velhice, e é isso que o Sábio de Eclesiastes está querendo dizer, desmoronam todas as nossas fantasias. E o que resta é só uma verdade. A maior de todas: a realidade de que a vida é puro vazio. Caminha para o nada. É eterna transitoriedade. Vir-a-ser. Como escrevera Heráclito de Éfeso, panta-rei, fluxo que conduz tudo e todos à vacuidade. Assim, sem constrangimento o Sábio pode escrever em Eclesiastes 1.2: “hevel havelim!”, do hebraico, “Sopro, a vida é um grande sopro!”, ou, “Nada, a vida é um grande nada!”, ou ainda como bem traduz a Bíblia do Século 21: “Que grande ilusão! Que grande ilusão! Tudo é ilusão!”.
O que fazer diante dessa realidade? Alguns endoidecem. Querem ganhar o mundo inteiro e perder suas almas. Lançam-se a todo tipo de prazer que podem usufruir. Outros, mergulham num oceano de patéticas angústias e comiserações. O Sábio desdenha de ambos. Os vê como estúpidos, porque realmente são. Perdem o pouco tempo de vida que possuem choramingando. Preocupados com ninharias. Os hedonistas enchem o espírito com as alfarrobas de prazeres que só agigantam o vazio da alma, produzidos pelo consumismo. Os masoquistas acreditam que a vida é lugar de expiação, de penitência, de dor purificadora. Todos, dirá o Sábio de Eclesiastes, são uns tolos.
Ora, qual a solução que o Sábio de Eclesiastes nos oferecerá para lidarmos com a realidade dura e fatídica da vida? Esta: Aceita a vida como ela é. Como espaço de contradições, de mudanças e de impermanência. Sim. Olha o absurdo da vida e diz: “Amo-te!”. Pois, sem isto, todo risco se transformará em medo paralisante. Toda angústia se converterá em depressão. Toda amargura de vida em ateísmo.
Para nós o problema da vida é que, antes de aceitarmo-la, vivemo-la. Melhor seria primeiro aceitá-la para depois vivermo-la. Então, é necessário um processo de aceitação da vida como ela é, em toda sua contradição, tragicidade, mutabilidade e transitoriedade, onde, diz o Sábio:
“Há tempo de nascer e tempo de morrer,
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou,
tempo de matar e tempo de curar,
tempo de derrubar e tempo de construir,
tempo de chorar e tempo de rir,
tempo de prantear e tempo de dançar,
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las,
tempo de abraçar e tempo de se conter,
tempo de procurar e tempo de desistir,
tempo de guardar e tempo de lançar fora,
tempo de rasgar e tempo de costurar,
tempo de calar e tempo de falar,
tempo de amar e tempo de odiar,
tempo de lutar e tempo de viver em paz”.
Bom é viver ciente de que a vida reside nesta paradoxalidade: É sempre a mesma e nunca a mesma. E nós, semelhantemente, de algum modo, somos sempre os mesmos, mas sempre outros à medida que amadurecemos ou não com a passagem dos tempos.
O desafio do autor de Eclesiastes é: Viva a tristeza de hoje sabendo que tristeza alguma é eterna. Um dia ela vai. E será seguida por alegrias. Choros podem durar noites inteiras, mas alegrias certamente virão em algum amanhecer. Quando chegarem esses dias não perca tempo. Carpe diem! Colha o dia! Aproveita o instante! Dê mais risadas e dance mais! Pois cada instante tem seu tempo. Como é feliz aquele que sabe dar valor ao instante! Pois, sabe que depois de toda alegria segue-se um novo ciclo de mortes, nascimentos e renascimentos, semeadura, cultivos e colheita, choros, prantos, risos e danças.
Viver é saber aproveitar o que de bom cada dia tem, seja ele agradável ou não.
1. ALVES, Rubem. Se eu pudesse viver minha vida novamente. Campinas: Verus Editora, 2010. P. 5
2. QUINTANA, Mario. Nova Antologia Poética. 9. ed. São Paulo: Globo, 2003.