Em 2007, o apresentador e escritor Marcelo Tas descreveu a rede social Twitter, que na época estava em franca expansão, com a seguinte ilustração: imagine estar em um bar, lotado de pessoas, das quais você não conhece a maioria; você se levanta e emite uma opinião sobre um assunto qualquer, de maneira que todos lhe ouçam e volta a sentar. Todos ouvirão. Alguns concordarão com você, outros não. Mas você vai interagir com dezenas, centenas e até milhares de pessoas ao mesmo tempo.
À época, Tas não imaginava que, a exemplo do Twitter, outras redes sociais surgiriam e que grande parte das pessoas que frequentam esses “bares” estão ali para incitar o ódio, disseminar informações falsas, depreciar pessoas ou instituições, difamar políticos e propagar todo tipo de preconceito, discriminação e desrespeito. E, o pior, sendo ouvidos e replicados por muitos.
Essas pessoas ganharam até um adjetivo próprio: hater, que traduzindo para português, “aquele que odeia” ou “odiador”.
Ocasional ou sistemático, o hater é aquela pessoa que, muitas vezes, se esconde atrás de perfil falso, se sentindo livre para proferir todo tipo de impropério contra pessoas que, na verdade, sequer conhece.
Imaginando as redes sociais como terra de ninguém, onde todos podem agir de acordo com sua própria necessidade de destilar ofensas para extravasar suas próprias frustrações, o hater recorre à liberdade de expressão quando é pego com a boca na botija e responsabilizado pelas injúrias, difamações e todo tipo de ofensas que distribui.
Outros conseguem ser ainda mais cínicos e tentam inverter os papeis, se dizendo vítimas de censura, quando os alvos de suas ofensas buscam na Justiça o direito de ter sua imagem e honra preservadas.
Sucessivas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) têm deixado clara a diferença entre liberdade de expressão e crime contra a honra ou ainda crime de ódio. Liberdade de expressão, como o próprio nome diz, é emitir opinião sobre alguma coisa.
Um exemplo claro de liberdade de expressão é manifestar opinião contrária a uma obra, programa ou projeto de governo, expondo que acredita que o recurso gasto naquela ação seria melhor aproveitado em outra. Pode até mesmo dizer que não gosta do jeito de governar de um determinado gestor ou gestora.
Mas, quando essa “opinião” é expressa por meio da depreciação da imagem do gestor, com comentários pejorativos ou ainda reforçando discurso que fortalece o preconceito e discriminação por causa da aparência física, sexo, idade, orientação sexual, crença religiosa, raça e/ou gênero, não é exercício da liberdade de expressão: é crime mesmo e como tal deve ser tratado.
Hater, política e misoginia
A política é ainda um ambiente dominado por homens, regido por valores masculinos, como força e agressividade. Como tal, é também território hostil para as mulheres. Comumente, as mulheres ocupantes de cargos eletivos são submetidas a situações desconfortáveis por causa de comentários machistas ou até mesmo misóginos, com objetivo de desqualificar seu trabalho.
Aliás, o julgamento de que mulheres são menos competentes para assumir cargos eletivos pode ser facilmente comprovado em números. Nas eleições do ano passado, por exemplo, as eleitoras somavam mais de 52%. Mas, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 651 elegeram prefeitas. Ou seja, pouco mais de 12% do total.
Mas, é preciso que se diga que o desejo de colocar as mulheres em posição de coadjuvante nas estruturas de poder ganhou grande reforço com as redes sociais. E que a sistematização da depreciação das mulheres no mundo virtual só consegue ter longo alcance por causa do engajamento de outras mulheres, que reverberam os discursos de ódio contra seus pares de gênero.
É inegável que os ataques orquestrados contra políticos nas redes sociais tendem a ser mais perversos com as mulheres. “Já tive a experiência de ser destratada, desrespeitada e vi minha competência ser questionada pelo simples fato de ser mulher”, lembra a prefeita de Palmas, Cinthia Ribeiro (PSDB), única mulher eleita para comandar uma capital brasileira no ano passado.
Ativa em suas redes sociais, onde mantém canal aberto de comunicação com seus eleitores, Cinthia já foi inúmeras vezes vítima de comentários jocosos, agressivos e que vão muito além das críticas políticas.
É preciso ter o couro grosso para aguentar as pancadas. Até porque, quando um político é criticado nas redes sociais, geralmente as críticas são direcionadas ao seu desempenho enquanto ocupante de cargo público. No caso das mulheres, as ofensas têm caráter mais pessoal e, não muito raro, os comentários fazem alusão à sua aparência física, idade e se estende inclusive à sua intimidade e de seus familiares.
“Me entristece muito, ver mulher falando mal de outra mulher, subestimando outra mulher, vulgarizando outra mulher, constrangendo outra mulher”, diz Cinthia Ribeiro, reforçando que para conquistar espaço e respeito “precisamos, sobretudo, sermos unidas e fortes; precisamos avançar na legislação e na formação de opinião”.
Além da prefeita da Capital, outras 19 mulheres lograram êxito nas eleições de 2020 para comandar municípios tocantinenses, colocando o Estado acima da média nacional, com 14% de gestoras eleitas. “Mesmo sendo a maioria da população e do eleitorado, quando o assunto é representatividade política, somos de longe a minoria”, lamenta Cinthia Ribeiro.
Josi Nunes (PSL), eleita para comandar o terceiro maior município do Tocantins, Gurupi, também lamenta os ataques que as mulheres no exercício de funções públicas sofrem nas redes sociais.
“Tenho sido alvo de mensagens depreciativas e difamatórias, principalmente agora, como prefeita; são piadas, montagens de imagens e coisas postadas como “brincadeiras”, como memes, para parecerem inofensivas, mas não são!”, afirma Josi Nunes.
A prefeita de Gurupi desabafa que é alvo de comentários desrespeitosos desde a campanha, quando até mesmo a sua idade (60 anos) foi apresentada como um fator que a descredenciava para ocupar o cargo de gestora municipal. Como esses ataques não cessaram, ela resolveu reagir.
“Resolvi dar um basta nessa situação e exigir o meu direito à retratação e ao respeito e faço um convite a todos os homens e mulheres que sofreram agressão ou qualquer outro tipo de violência que reajam também, pois temos instrumentos legais para combater tais agressões e garantir nosso direito, afinal, todo ser humano merece respeito”, ressalta a Josi Nunes.
A deputada estadual Luana Ribeiro (PSDB) está em seu quarto mandato e foi a única mulher a presidir a Assembleia Legislativa do Tocantins. Ao longo de sua carreira política, ela já sofreu muito com o comportamento machista, inclusive de seus pares. “Para se manter na política, as mulheres enfrentam muitos desafios e o primeiro deles é que temos que trabalhar muito mais do que os homens para termos algum reconhecimento”, diz a parlamentar.
Tendo como mentor seu pai, o ex-senador João Ribeiro, Luana foi bem preparada para o jogo político e, por isso, diz que não se vitimiza e prefere ignorar aquilo que não lhe acrescenta nada. “A política é um ambiente masculino e já vivi muitas situações de machismo, mas eu enfrento a vida olhando para frente e superando cada uma delas, e o grande desafio é enfrentar de cabeça erguida, de igual para igual, sendo firme, mas sem perder a educação, a ternura, a sensibilidade, que é o diferencial que temos enquanto mulheres”, ressalta.
Redes sociais x veículos de imprensa
Nem todo usuário de rede social age de má-fé, mesmo quando compartilha notícias falsas ou até mesmo injúrias, difamações e casos mais extremos, calúnias contra agentes públicos. Muitos usam as redes sociais como fonte de informação e acreditam que por meio de postagens diversas estão a par das principais notícias do dia.
Por isso, vale esclarecer que redes sociais não são veículos de imprensa. Aliás, são muitas as diferenças entre redes sociais e veículos de imprensa. Redes sociais são locais de interação entre pessoas, ou seja, plataformas onde o público posta, compartilha e divulga informações do seu interesse a seus amigos, gerando interação com eles ou outras pessoas. Nas redes sociais não existe compromisso de informar ninguém, mas de trocar ideias com pessoas com as quais se têm afinidade.
Já os veículos de imprensa são sites onde são publicadas notícias, escritas por jornalistas, baseadas em fatos checados e com fontes reconhecidas. Claro que a facilidade para se criar sites, possibilita também o surgimento de muitos que atuam como redes sociais, onde são postados conteúdos de origem duvidosa, muitos feitos sob encomenda com o objetivo de tão somente de desqualificar pessoas ou instituições e ainda de fomentar o ódio contra uma pessoa específica ou contra grupos de pessoas.
A prefeita de Gurupi, Josi Nunes, defende que a liberdade de expressão é um direito que deve ser preservado, uma vez que está garantido pela Constituição Federal. “Infelizmente, as pessoas estão usando as redes sociais como um campo aberto, um campo sem lei, e isso não é verdade. Hoje, há regras, há limites para o uso das redes sociais e nós temos que estar atentos e fazer cumprir o que está definido com relação a lei, a legislação”, reforça Josi.
Ela alerta que é preciso ter cuidado para não ajudar a propagar Fake News, incitar o ódio ou ameaçar vidas, com a desculpa de que é apenas uma brincadeira. “Essas questões têm que ser limitadas, elas têm que ser repudiadas”, reafirma a prefeita de Gurupi, completando que já existe muita discriminação de cor, sexualidade, gênero, religião, idade. “E nós também temos que lutar contra tudo isso, porque nós queremos um mundo de paz, de justiça, de igualdade”, concluiu.
Cinthia Ribeiro finaliza dizendo que as redes sociais significam um grande avanço nas relações humanas. Mas, que é preciso usá-las tendo o respeito ao outro como limite para aquilo que deve ou não ser publicado. “Desejo que o nosso sorriso continue conquistando as pessoas, mas que o nosso reconhecimento venha, sobretudo, da nossa competência e determinação”, completou.
Já Luana Ribeiro acredita que estamos evoluindo e que essa evolução depende também da postura de quem sofre os ataques. “Cada dificuldade que eu enfrento me dá mais força para lutar; se a política é um ambiente hostil para as mulheres, isso faz com que eu seja ainda mais firme para enfrentá-lo”, garante a deputada estadual.
Desmitificando a ideia de que a internet e as redes sociais são terra de ninguém, são terra sem lei, vale lembrar que todos os crimes, sobretudo, os contra a honra, cometidos e punidos na “vida real”, no mundo físico, são cometidos em âmbito virtual, só que neste caso, punidos também no mundo real.