Um ar de agressividade, somente vista nas décadas de 1960, voltou a dominar o ambiente político de nosso país. Desde 2018 não tem sido fácil falar sobre coisas relacionadas ao tema da política. Falar sobre o assunto, tecer críticas e se posicionar politicamente, se transformou, para as mentalidades mais intolerantes e radicais, em um ato de guerra, de afronta, frente ao cada vez mais explosivo ambiente de polarização que se tem vivenciado no Brasil.
Não poucas amizades foram quebradas e laços familiares rompidos desde as últimas eleições. Ainda hoje, quem ousa se posicionar, principalmente nas redes sociais, não conseguirá, por mais ameno que seja em sua ponderação, fugir de críticas violentas e até mesmo desrespeitosas, ou de ser etiquetado como o comunista ou o fascista da vez.
A razão de termos chegado em situação tão terrível é principalmente uma: desaprendemos a importância do diálogo na vivência democrática. Diálogo respeitoso que considera a opinião divergente do outro não como ataque, mas como concepção de mundo a ser respeitada.
Segundo Aristóteles o ser humano é zoon politikon (animal político). Geralmente esse seu conceito é traduzido pelos manuais introdutórios de filosofia como a afirmação de que o ser humano inatamente é um sujeito político, que quer dizer, tendente a organizar, por meio da política, a vida em sociedade.
Os gregos, desde Péricles, realmente tinham em alta estima a polis, estabelecendo que, a maior das finalidades do indivíduo deveria ser viver antes para o bem-estar da cidade do que para si, uma vez que, como bem sistematizou a tríade filosófica Sócrates, Platão e Aristóteles, para ficar apenas nestes, a felicidade do indivíduo, e o próprio forjamento do sujeito enquanto humano e racional, dependia do organismo social, que educa pela cultura transformando o zoon em politikon.
É verdade que tal conceito não deixa de contemplar o significado do ser humano como animal político, isto é, como aquele que participa de ações políticas para organizar a vida em sociedade com fins na promoção do bem-estar social. Entretanto, o pensar de Aristóteles transcende esse conceito.
Segundo o estagirita, por zoon politikon quer afirmar o sujeito inserido numa sociedade como um ser-inatamente-propenso-ao-diálogo. Diálogo possibilitado, e plenamente exercido, no campo político. Principalmente por que o diálogo é o instrumento do fazer político. Seu meio de acontecer. Então, pensa Aristóteles, somente porque somos entes comunicativos temos condições de organizar a vida politicamente em sociedade. A base da boa política estaria na arte do bom diálogo.
Nossa tradição democrática e republicana herdou muito do pensamento helênico, chegando a grau de democracia ainda mais ampla e inclusiva. É verdade que o povo tinha participação popular nos rumos da cidade, principalmente na era de ouro de Péricles, através das Eclésias, pequenas assembleias populares espalhadas pelas cidades onde as pessoas podiam dar suas opiniões numa democracia direta. Contudo, somente poucos, os cidadãos, classe restrita a homens alfabetizados e educados na arte da retórica e da oratória, conseguiam ter voz e vez de fato nas decisões finais. Quem detinha o poder político no final das contas era a aristocracia. Motivo pelo qual Platão chegou a sugerir que seria melhor mesmo que um “rei-filósofo” regesse o Estado sem a necessidade de participação popular.
A democracia moderna, inspirada pela Revolução Americana de 1776, que abriu espaço para as acaloradas discussões para a formação de uma Constituição dos Estados Unidos mais igualitária, que, por sua vez, influenciou as modernas democracias ocidentais a partir do século XVIII, alargou a participação popular com a fundação da democracia pelo critério da cidadania fundada no direito ao voto, pela representatividade eleitoral. Com a democracia americana todo o povo era convidado a participar das discussões sobre os rumos do Estado. É claro que só conseguiremos vislumbrar esse ideal após a luta pelos direitos civis dos negros por volta da década de 1960. Contudo, a democracia desde já dava sua tônica de inclusividade.
A democracia, portanto, se constitui pelo jogo do embate de ideias divergentes, pela conversação, em torno dum único objetivo comum e comunitário: o bem-estar social. Embate que agora não precisa acontecer exclusivamente nos espaços formais onde a política é decidida em expressões executivas e legislativas, mas que acontece principalmente no terreno das conversas populares nas praças, nos churrascos de domingo, nos almoços de família, nas universidades, etc.
Todo político inteligente sabe a importância de estar inteirado sobre essas conversas, aparentemente banais, que acontecem nos centros de poder formais. Pois, é a partir delas que poderá formular seu discurso eleitoral e elaborar seus projetos e promessas, já que na democracia, mesmo o mais rico aristocrata, de quatro em quatro anos é forçado a pedir ao povo, de onde emana todo poder político, seu voto de confiança (Art. 1º, Parágrafo Único, da CF).
A coluna mais sólida que sustenta toda democracia, desde sua fundação como sistema de governo, é, portanto, a capacidade de discussão de divergentes ideias através do diálogo. Sem espaço para que o diálogo sobre ideias políticas divergentes aconteça, a democrática não é possível, posto que, só se pode chegar a políticas públicas assertivas ouvindo a pluralidade das perspectivas nessa troca de ideias entre diferentes. Com isso quero dizer que, visões de mundo homogêneas e uniformidade de pensamento político, são traços mais condizentes com sociedades autoritárias do que democráticas. Na democracia prevalece o espírito do povo que é sempre plural, principalmente no campo das concepções, mas que guarda, mesmo na diversidade de opiniões, um anseio comum: a querência do bem-estar social.
Com isso quero dizer que, todos do povo, aspiram, por exemplo, por serviços públicos como educação, saúde, segurança, previdência públicas, acesso a tecnologias de massa como internet, etc. Estas são aspirações comuns de toda e qualquer pessoa, a despeito da opinião distinta de cada um sobre como realizar tais aspirações.
Na democracia eleva-se a importância de cada voz. E é verdade que algumas vezes a vontade popular mais atrapalha que ajuda. Nesse sentido, concordo com o que teria dito o primeiro-ministro da Inglaterra Winston Churchill: “A democracia é o pior dos regimes, mas não há nenhum sistema melhor que ela”. Penso ser o melhor sistema de governo em virtude de a democracia distribuir direitos, deveres e responsabilidades. Assim, compreendemos que, se acertamos, acertamos juntos e, se erramos na escolha de nossos representantes, erramos juntos. Ela faz com que sintamos o peso das consequências de nossas escolhas na qualidade ou não dos serviços prestados na ponta por esses mesmos representantes. A culpa nunca é destes sem antes ser nossa que os elegemos.
Um Estado democrático se fortalece à medida que cada um de seu povo faz a boa política através da abertura para o diálogo respeitável entre ideias e mentalidades de mundo divergentes. Quando mesmo discordando dos meios para atingir fins comuns, cada um está aberto para entender o ponto de vista do outro. Quando esta, que é a base de toda sociedade democrática, digo o diálogo respeitável entre ideias e mentalidades divergentes, é afetada, a democracia cambaleia. É o que acontece com o advento das polarizações extremistas.
Sobre estas polarizações escrevem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt escrevem:
O enfraquecimento de nossas normas democráticas está enraizado na polarização sectária extrema – uma polarização que se estende além das diferenças políticas e adentra conflitos de raça e cultura. […] E, se uma coisa é clara ao estudarmos colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema é capaz de matar democracias.[1]
A polarização política é sinônimo da tentativa violenta de silenciamento do contraditório. De quem pensa diferente do que pensamos. É a interrupção do diálogo entre os do povo. Acaba sendo uma forma de tentarmos não só deslegitimar seus discursos, mas seu próprio existir, cultura, história racial, etc. Um bom exemplo disso encontramos no modo afobado e truculento como um desses espectros políticos tenta suprimir a possibilidade de debates sobre a necessidade de políticas públicas afirmativas dos direitos civis das mulheres, ou de reparação histórica junto às populações afrodescendentes, legatárias da tragédia atual da situação desfavorável da maioria dos negros, consequência do escravismo que perdurou por essas terras por 350 anos!
Vimos essa polarização ganhar tons mais obscuros com as últimas eleições de 2018, que produziram uma das maiores fissuras no campo do diálogo político entre os cidadãos brasileiros. Uma onda de ódio enxurrou as conversas cotidianas, dividiu famílias e criou inimizades que se estendem até hoje, pois, a sensação, que na verdade é a realidade de nosso drama brasileiro, é que as eleições de 2018 nunca terminaram. Dado que os embates políticos mais acirrados, que deveriam chegar ao seu fim com a eleição dos representantes políticos eleitos, insistem em continuar, principalmente sob a inflamação popular causada por aquele que deveria unificar o país pós-eleições, como sempre acontece em qualquer democracia: o chefe do Executivo nacional, o Sr. Jair Messias Bolsonaro. Ao invés de apaziguar os divisionismos e ódios, o que fez foi agigantar ainda mais o abismo entre os que pensam diferente, não se esforçando em nenhum momento para unir as vontades populares plurais em torno do bem comum. Impondo uma vontade sua, e de pequena parcela da população, de homogeneização política, cultural e religiosa neopentecostal, impossível de ser concretizada em um país com traços acentuadamente democráticos e de proporções continentais, com peculiaridades culturais regionais fortes, acabou por esgarçar de uma só vez o tecido nacional, dividindo o povo drasticamente, excitando maiores ondas de ódio e agudizando a falta de diálogo. A democracia brasileira encontra-se em profunda vertigem.
Esse comportamento que, sejamos justos, apesar de ser agravado por Bolsonaro, não nasce com ele, mas de um sentimento de insatisfação popular, tem se intensificado, não havendo diálogo político entre partes divergentes sem que haja agressões mútuas.
Hoje o diálogo entre quem pensa diferente foi substituído pela vontade meramente de atacar o outro que diverge de opiniões e crenças que são caras a determinado lado da polarização. Alargado o tal abismo, ambas as partes, de uma ponta à outra da fenda, só sabem gritar, ofender e querer igualmente silenciar quem pensa diferente. O debate respeitoso de ideias perdeu espaço para a guerra ostensiva e ofensiva de acusações mútuas de comunismo, fascismo e nazismo. O debate sóbrio foi suspenso no Brasil.
É possível perceber isso nas conversas de famílias e até mesmo em postagens de redes sociais. O diálogo respeitoso, que antes fazia-nos debater política em torno de objetivos comuns referentes ao bem-estar social, agora inexiste. Hoje as pessoas não falam mais sobre o dever dos governantes prestarem serviços públicos de qualidade à população, garantir uma economia mais arrojada e inclusiva e dirimir os nefastos efeitos das desigualdade sociais que as flagela. No curso da atual pandemia de COVID, não tecem debates sobre a responsabilidade dos governos de testagem e vacinação em massa. Os discursos são sempre de ódio contra o outro. O bem-estar social foi perdido de vista. Nas conversas sobre política o que se quer é vencer narrativas através da ferocidade de falas inflamadas, não de diálogos ponderados sobre o que realmente importa para o povo.
Penso que urge refazermos caminhos a fim de que possamos, como povo, nos reencontrar novamente. Deixando os histerismos por mitos e salvadores da pátria, a fim de defendermos o necessário para além do contingente: a consolidação de uma democracia mais robusta, que reformula o establishment para que atenda satisfatoriamente os anseios populares acerca de problemas reais que nos afligem: precariedade de educação, saúde e segurança pública de qualidade, aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades socioeconômicas, o desrespeito ao diferente e a não inclusão de grupos minoritários em políticas públicas.
Para tanto, é preciso trazer de volta o espírito da democracia ausente na arena pública hodierna. Este espírito tem seu cerne exatamente no diálogo tolerante, respeitoso e não-violento. Que foca novamente na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e melhor para todas e todos, independentemente de seu espectro político.
Gente de esquerda e de direita quer comer todos os dias. Quer ter emprego e renda justa. Deseja ter acesso às tecnologias de massa. Sonha em adquirir a casa própria e viajar sem se endividar. Anseia morar em lugares bem urbanizados, arborizados e com saneamento básico garantido. Estes deveriam ser os pontos a serem perseguidos nas pautas de nossos embates políticos. Não tem sido. O objetivo da vez das guerras políticas travadas nas famílias, em rodas de conversas e nas redes sociais, tem sido sobre colocar um governo de esquerda ou de direita, sem se atentar para pensar criticamente de que forma este ou aquele governo resolverá satisfatoriamente os problemas postos, garantindo aquilo que como povo precisamos de fato.
Só será possível uma democracia que funcione para o bem de todos se, através de um esforço pessoal de querermos suprimir as animosidades e paixões político-partidárias individuais, afastando-nos do que nos divide, passarmos a pautar nossos embates em torno do bem comum da comunidade, não da eleição deste ou daquele político que estimamos. Além de compreender a democracia como espaço de todas e todos, para todas e todos, onde toda ideia, menos as que combatam a própria existência da democracia, são possíveis e devem ser ouvidas de modo respeitoso e não ofensivo.
Se retornarmos a tempo ao legítimo foco de nossos esforços políticos, o bem-estar social, para além de partidarismos ou cultos personalistas deste ou daquele político, a sobriedade reinará sobre a barbárie das discussões que se tem travado. Para tanto, este deve ser um retorno de iniciativa de vontade popular, que começa por iniciativa de cada um. Ainda há tempo de respirar os bons ares do espírito democrático.
[1] Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. Zahar. Edição do Kindle.