O sociólogo Zygmunt Bauman escreve: “As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações”.1
A palavra cuidado é uma delas.
Falar em cuidado é falar sobre amor. Por que o cuidado é a encarnação do amor. O amor não tem corpo. Não tem matéria. Se concordarmos com Platão, amor é realidade que habita o “mundo das ideias”. Das perfeições irreais no nosso mundo. Assim, estaríamos tratando uma abstração. Não é assim que geralmente pensamos o amor em nossa mentalidade Ocidental: como uma abstração que ganha realidade em nossos sentimentos?
Discordo dessa concepção de amor. Para mim a melhor tradução do que é amor vem da tradição religiosa judaica para quem amor (sentimento) é imediatamente amar (ato). Portanto, nada tem a ver com abstrações, mas como ato sendo somente no mundo dos fatos. Mas, quando o amor se concretiza dessa forma, ou pelo menos é compreendido nesses termos, estamos falando em cuidado.
É tempo de cuidado. Mais do que nunca é tempo de cuidar. Como “a vida humana é, assim, um esforço incessante para preencher um vazio assustador, tornar a vida significativa”2, concebemos que esse vazio só pode ser amenizado pelo cuidado. Como a vida ganha um sabor, uma cor, um sentido quando nos vemos no toque, na bem-querença, no afago de alguém.
Conseguimos observar isso nitidamente hoje por onde quer que passemos. Em cada face cansada, corpo encurvado e silêncio de olhar pelo qual cruzamos nas ruas, no trabalho ou mesmo em nossas casas, enxergamos almas que apelam por olhar, carinho, socorro, conselhos. Que carecem da sensibilidade e da atenção de outro alguém que se importe com elas. Não saímos do campo cuidado. Todas essas expressões são parte de sua estrutura dinâmica.
A pandemia da COVID, exigindo de nós a prudente distância, acabou por golpear fortemente os sentimentos e emoções de todos nós, de maneira tal, que todos sentimo-nos demasiadamente frágeis, perplexos e perdidos. Sem saber ao certo o que fazer para apequenar esses sentimentos, não poucos têm experimentado o vazio de uma vida sem companhia e suprimento de afetos. Como escreve Tom Jobim em Wave, “é impossível ser feliz sozinho”. E é mesmo. Porque fomos criados para as relações de afeto e de amor. Quando somos privados disso, podemos ter até uma vida abastada, sentiremos os efeitos devastadores da solidão.
O cuidado se faz necessário e a consciência da necessidade de nos prontificarmos a cuidar também. Queremos ser cuidados. Em tempos pandêmicos não falta quem se coloque no lugar de vítima. Mas, temos percebido o espírito da época que convoca-nos a cuidar?
Diante dos sofrimentos que temos passado corremos o risco de nos acharmos os mais sofredores da Terra. De nos isolarmos ainda mais do que estávamos isolados em nossas bolhas. Mas, se pararmos para pensar bem, perceberemos que há pessoas que sofrem dores muito maiores que as nossas. Isso por si só deveria ser um estímulo a sermos mais compassivos e menos vitimistas. O problema é que a maioria das pessoas não se predispõe a isso por que estão “ocupadas de mais cuidando dos próprios problemas”.
Cuidar de outrem é um problema para essas pessoas por que todo cuidar é um sair-de-si. Um estender-se em acolhimento e encontro do outro em sua caminhada necessitada, dolorosa, solitária, desesperançosa e amargurada. Exige negação de si, certos sacrifícios, esforço e trabalho, sem recompensas pessoais. Coisas que gente habituada a viver segundo as normas de uma sociedade capitalista não está acostumada.
Em dias como os nossos, onde a dor e o luto se espraiam e abalam tantas casas, corações e pensamentos, gente que cuida trazendo alívio, refrigério, bonança e esperança, são urgentes.
O teólogo Leonardo Boff, falando sobre o cuidado, escreve:
Cuidado é aquela condição prévia que permite o eclodir da inteligência e da amorosidade, é o orientador antecipado de todo comportamento para que seja livre e responsável, enfim, tipicamente humano. Cuidado é gesto para com a realidade, gesto que protege e traz serenidade e paz. O cuidado é sempre cuidado essencial.
Sem cuidado, nada que é vivo sobrevive. O cuidado é a força maior que se opõe à lei da entropia, o desgaste natural de todas as coisas pois tudo o que cuidamos dura muito mais.3
Com essas palavras o que Boff quer dizer é que, sem cuidado, a vida definharia. Corre risco de ser não mais vida, mas morte. A lei da entropia, da desordem gradual, devoraria tudo levando o mundo ao caos primordial: onde tudo é “sem forma e vazio”. A vida carece de cuidado para continuar, porque todo cuidado preserva.
Pensando em como o cuidado se dá lembrei-me de minha sogra. Há quem não tenha alegria em lembrar da própria sogra. Pois bem, eu tenho.
Minha sogra cultiva um belo jardim em sua casa. Quem por lá chega se admira ao ver suas rosas do deserto floridas, suas orquídeas e dracenas bem vistosas. Algumas vezes vejo pessoas que aparece por lá dizerem: “Como queria um jardim desse em minha casa”. Mas, geralmente o que percebo é que quem diz isso parece pensar que jardins florem do nada, de um dia para o outro. A verdade é bem diferente.
Matagais nascem de um dia para o outro. Sem cuidado, são matos feios. Não conheço um matagal bonito. Aqueles matos altos, desproporcionais, crescendo de qualquer jeito… É uma feiura só! Quem se arrisca a se embrenhar neles sabe que está entrando em ambiente perigoso. Qualquer coisa ou bicho peçonhento pode sair de lá. Mas, onde há jardim há alguma mão cuidadosa de jardineiro.
Antes de continuar a falar sobre o jardim de minha sogra deixem-me compartilhar outra lembrança que me ocorre.
Alguém me contou a seguinte história. Um homem estava à deriva no mar por semanas quando escutou de seu bote um barulho de ondas quebrando nas rochas. Animado, levantou-se e viu que estava perto de uma ilha. Empregou o restante das forças que tinha para conduzir o bote salva-vidas à praia, fazendo das mãos remos. Pondo os pés na ilha foi mata a dentro a procura de algo para comer, e encontrou um jardim próximo a um riacho. Não se intimidou em correr para o riacho e saciar sua sede naquelas frescas e doces águas límpidas. Também devorou muitos frutos graúdos e carnudos do jardim. De repente, se viu surpreendido por um grito: “Pega ladrão!”. Era o dono do jardim. O homem ficou paralisado e apressadamente tentou explicar a situação embaraçosa na qual se encontrava: “Amigo, desculpe-me. Não sou ladrão. Acabei de descer nessa ilha. Estava à deriva por semanas no mar. Quando cheguei aqui decidi entrar mata a dentro para ver se achava algo para comer e água para beber. Encontrei esse jardim. E, pensando que não pertencia a ninguém, decidi comer e beber”. O dono do jardim lhe disse embravecido: “Não lhe ensinaram, meu rapaz, que não há jardins sem jardineiros que os cultivem?”
Muitos têm o costume de ver negócios bem-sucedidos, famílias saudáveis e bem estruturadas emocionalmente, pessoas trabalhando em empregos rentáveis, ou adquirindo a tão sonhada casa própria, e pensam: “Por que eu não consigo realizar esses sonhos?” É importante que se faça outra pergunta: “Como tenho cuidado do que já possuo, negócios, família, trabalho, finanças, para concretizar os sonhos que quero realizar?”.
Voltemos ao jardim. Jardins não são realidades prontas. Não são produtos do acaso da natureza. São frutos do trabalho de quem cuida. Do ato de amor que racionaliza o ambiente tornando-o um lugar melhor. Mais fecundo, frutífero, aprazível e belo. Quem deseja jardins alheios saiba disso: ter um jardim bonito não sai barato e dá muito… muito trabalho! Exige atitudes que fazem do cuidado algo necessário. Cito pelo menos quatro importantes: tempo disponível, trabalho, atenção e amor. Sem estas quatro realidades todo cuidado está fadado ao fracasso do não-cuidado.
Recordemos mais uma vez das flores de minha sogra. Quanto a disposição de tempo, todos os dias ela oferece parte de seus minutos, e até horas, para se dedicar às suas flores. Para regá-las, aparar a grama com seu marido e fiscalizar se tudo está bem.
Todo jardineiro sabe que flor de jardim não sobrevive sem alguém que se disponha a trabalhar nela. Para que jardins venham a florir há de haver trabalho. Sujar as mãos de terra, adubar o solo, limpar e aparar a grama, proteger as plantas das pragas, regá-las. Com esse exercício aprendemos que cuidado só é cuidado quando se manifesta em esforçoso trabalho. Se pensarmos nossa família como nosso jardim, é preciso perguntar se tempos dado tempo para ela. Tempo para o marido, para a esposa e para os filhos. Tempo para passeios e conversas em família. Mas, trabalhar apenas não basta. Jardins precisam de atenção.
A atenção é necessária para um trabalho bem-sucedido. Minha sogra observa com atenção suas flores e plantas. Se uma só pétala empalidece, o caule de alguma planta se curva para além do habitual, sabe que ali está uma plantinha que não está muito bem, e corre para socorrê-la. A atenção do cuidado é a atenção do amor que jamais descansa em perceber a realidade do outro e que se propõe a estar de sobreaviso.
Quantas amizades que pareciam jardins admiráveis vi secarem por falta de atenção! Quantos relacionamentos entre pais e filhos estragados porque os pais não deram a atenção devida aos problemas de seus filhos. O olhar atento do marido/esposa, que observa uma estranha tristeza em seu cônjuge e busca meios de conversar sobre o que o (a) aflige e fortalece-o (a), salva casamentos! O olhar atento de um amigo que sente que o outro não está bem e se aproxima ofertando aconchego solidifica os vínculos de amizade e salva vidas!
Tanto a disposição de tempo, quanto o trabalho e a atenção, só são possíveis no cuidado porque há amor. Não o amor platônico, como já sinalizei acima, mas o amor prático. Esse amor é o que nos impele ao cuidado. O que move minha sogra todos finais de tarde às suas flores é o amor que prática par com elas. Amor que a impulsiona a cotidianamente dispor de tempo, prestar atenção e trabalhar em prol da preservação e do bem-estar de seu jardim.
O que funciona para um jardim cuidado por um jardineiro, funciona para tudo aquilo que dizemos amar.
Estamos carentes de gente que queira cuidar em meio a muita gente que precisa de cuidados. O convido você a fazer? Sair de suas bolhas. Querer ser jardineiro na vida de alguém. Cultivar esperança em que precisa de esperança. Adubar alegria na vida daqueles que se encontram pálidos e entristecidos. Animar os enlutados. Sair de sua zona de conforto na direção da zona de desconforto do outro que sofre.
Se cada um de nós cuidarmos uns dos outros, nos tornaremos uma comunidade de gente assistida e cuidada. Deixaremos de ser matagal para nos tornarmos jardins. Nos dediquemos ao cuidado.
1. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. P. 7.
2. BAUMAN, Zygmunt A Individualidade no Numa Época de Incertezas. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. P. 17
3. BOFF, Leonardo. Ética e Eco-Espiritualidade. Campinas: Verus Editora, 2003. P. 30.