Muitas vezes a cara de pau não é de quem entra na Justiça para ter acesso a algum direito acredita que tem.
Existem situações em que a pessoa lesada nem sabe que está sendo abusada e que direitos seus estão sendo gatunamente usurpados.
Um dos casos retratados na coluna de hoje é pitoresco pela tamanha falta de noção de parte reclamada, que acabou pagando caro por abusar da miséria e da boa fé de vulneráveis.
E para não dizer que de repente passei a levar as coisas muito a sério, também tem um daqueles casinhos de gente que acha que a Justiça é penico e que nela pode se depositar qualquer coisa.
Hotel River Jungle
Durante cinco anos, entre 1998 e 2003, o Hotel River Jungle, em Manaus (Amazonas) ofereceu uma atração única para seus hóspedes, vindos de todas as partes do mundo: apresentação de um grupo indígena da etnia tariano.
Trazidos do noroeste do estado, o grupo contava com 34 adultos de idades variadas e algumas crianças.
Eles eram obrigados a fazer apresentações de seus rituais para deleite dos hóspedes e faziam jus à alimentação (restos da cozinha do hotel) e a um cachê de R$ 100, para ser dividido entre os adultos do grupo.
Você não leu errado: é cem reais mesmo.
Naturalmente, os indígenas eram proibidos de andar pelas dependências do hotel, devendo ficar confinados até serem chamados para se apresentar.
Também eram proibidos de falar português, já que o dialeto de sua tribo fazia parte da atração.
Eram obrigados a ficar à disposição sempre que fossem convocados para se apresentarem, qualquer hora do dia, incluindo sábados e domingos, já que as apresentações dependiam da vontade dos hóspedes.
Em 2003, a Fundação Nacional do Índio (Funai), elaborou um relatório, onde comprovava as dificuldades e a exploração sofrida pelos indígenas e o caso foi parar na imprensa.
Para se livrar do problema, o Hotel River Jungle simplesmente dispensou o grupo, sem pagar nenhuma compensação pelo seu trabalho.
A Funai, juntamente com o Ministério Público do Trabalho, colheu diversos depoimentos, comprovando que os maus tratos e constrangimentos aos quais os indígenas eram submetidos.
Por meio de uma ação civil pública, o MPT pediu que a Justiça do Trabalho reconhecesse a relação de emprego entre o grupo e o hotel, obrigando este a efetuar o pagamento de todos os salários aos quais cada indivíduo do grupo teria direito durante os cinco anos em que se apresentaram no local, além de uma indenização por dano moral.
E a Justiça se fez!
O vínculo empregatício foi reconhecido e o hotel condenando a fazer o registro da Carteira de Trabalho de todos os adultos do grupo e efetuar o pagamento de todos os salários aos quais tinham direito.
E de quebra, foi condenado a pagar R$ 250 mil, a título de indenização pelos danos morais, uso da imagem e todo o sofrimento causado aos indígenas.
De bêbado não tem dono
Em uma situação de abuso, a culpa nunca é da vítima.
Mas, para toda regra há exceção.
Em 2004, o desembargador Paulo Teles, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás, ficou responsável por dar parecer a um caso para lá de inusitado.
Luciano Costa da Silva moveu uma ação contra seu amigo, José Roberto de Oliveira, se dizendo vítima de abuso sexual e que o acusado teria feito sexo anal com ele, aproveitando-se de sua vulnerabilidade por estar embriagado.
Segundo a própria “vítima”, o caso teria se dado da seguinte maneira:
Oliveira pegou sua esposa, Ednair Alves Aurora de Assis, e levou-a até uma construção, no parque Las Vegas, em Goiânia, acompanhado de Silva.
No local, ele mandou a esposa e Silva tirarem toda a roupa e fazerem sexo para ele (Oliveira) assistir, porque queria fazer uma “suruba”.
Depois que todos estavam nus, Oliveira teria empurrado sua esposa contra o corpo de Silva e aproveitou a oportunidade para penetrá-lo por trás, num coito anal.
Silva alega que além do álcool, tinha feito uso de entorpecentes e que por isso não tinha condições de reagir, chegando a perder completamente os sentidos.
O acusado, que já tinha sido absolvido em 1ª instância, ficou novamente livre das acusações, por unanimidade.
Seguindo o voto do desembargador-relator do processo, os magistrados entenderam que as provas trazidas aos autos pela acusação limitaram-se aos depoimentos prestados em juízo por Silva e sua mãe. E que a “ausência de provas deixa abalada a credibilidade dos elementos apurados na instrução processual, o que desautoriza uma condenação” (trecho do parecer).
Além disso, a esposa de Oliveira também prestou depoimento e afirmou que Silva participou da “orgia” por livre e espontânea vontade, levando o relator a aplicar o princípio do in dubio pro réu e confirmar a sentença que absolveu o acusado.
O desembargador recorreu também a outras fontes de informações para complementar sua decisão:
“A literatura profana que trata do assunto, dá destaque especial ao despudor e desavergonhamento, porque durante a orgia consentida e protagonizada não se faz distinção de sexo, podendo cada partícipe ser sujeito ativo ou passivo durante o desempenho sexual entre parceiros.Tudo de forma consentida e efusivamente festejada”, concluiu.
Quem participa de um bacanal e acaba sendo alvo de sexo passivo não tem direito a reclamar. Para a Justiça goiana faltou provas para demonstrar alegado crime, além de ter ficado claro que a vítima participou de livre espontânea vontade do sexo grupal.
Conforme publicado no site do Tribunal de Justiça de Goiás, o inquérito policial informa que o acusado, José Roberto de Oliveira, constrangeu Luciano Costa da Silva praticando com ele ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Silva alegou em seu depoimento que não podia oferecer nenhuma resistência, pois se encontrava em estado de embriaguez, chegando a perder completamente os sentidos.
Após algum tempo, segundo os autos, Oliveira passou em sua casa e buscou a esposa, Ednair Alves Aurora de Assis. Depois, levou-a até uma construção próxima, no parque Las Vegas, e a obrigou a tirar suas roupas deixando-a nua.
Neste momento, ele teria ordenado a Silva que também tirasse suas roupas e transasse com sua mulher, afirmando que queria fazer uma “suruba”. Conforme os autos, Oliveira empurrou a esposa contra o corpo de Silva e logo após praticou coito anal com o mesmo, aproveitando-se da situação em que ele se encontrava naquele momento. O acusado foi absolvido. Seguindo voto do relator, desembargador Paulo Teles, o colegiado negou provimento à apelação interposta pelo Ministério Público de Goiás para reforma da sentença de primeira instância que absolveu o acusado.
O relator Paulo Teles entendeu que, devido à ausência de provas e mediante o depoimento de Ednair prestado ao juiz, em que confirma a participação de Silva na “orgia” por livre e espontânea vontade, deveria aplicar o princípio do in dubio pro reo e confirmar a sentença que absolveu o acusado.
Rira Araújo é Jornalista
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